ESTREMECIMENTO

O tempo passa? Não. A idade avança no tempo. Olhamos ao redor e constatamos que as crianças já não são mais crianças. Chegaram à maturidade. São uns quarentões...
A vida se escoa incondicionalmente, cada vez mais rápida. Antes, o esplendor da juventude. Hoje, velhos. Quando será o epílogo? A vida é como um romance cujo autor não nos dá o direito de avançar e espiar a última página.
Cada dia uma surpresa. Os costumes, as regras sociais, os preceitos, os princípios morais e éticos, estruturas estas que a vida vai abalando e, muitas vezes, meio a um turbilhão, vai arrancando ao vivo, sem dó nem piedade, sem bisturi e sem anestesia. Apara arestas aqui, serra pontas acolá... Arranca raízes... A dor lancinante atordoa-nos. Vem o sofrimento. Tudo parece nos desnortear e pôr nossa nave à deriva. Enquanto buscamos o rumo, sofremos muito. Questionamo-nos: “meus valores são realmente verdadeiros? O que é certo? O que é errado?” Vozes nos gritam ao mesmo tempo como vuvuzelas:  “O muuuuuundo mudooooooou!...”
As forças antagônicas, já constatavam os filósofos na antiga Grécia, conduzem à harmonia. A harmonia do mundo deriva de uma luta de contrários, sendo que cada um desses contrários tende a destruir o outro, mas que, no entanto, não conseguem ultrapassar certos limites, graças à intervenção de uma regra soberana (...)
O outro é o nosso inferno, mas nos faz crescer. Ao longo da jornada vamos jogando fora o orgulho, o preconceito, a vaidade, o ciúme, o amor próprio, a raiva... e até constatamos que muitas coisas de que gostávamos já não têm importância e, talvez fossem caprichos... Vamos aprendendo a filtrar a simplicidade, a verdade, o lado bom, o belo... Será que vamos ficando indiferentes? Ou nos tornamos melhores? Espiritualmente superiores?
A vida vai passando, dia- a- dia, a passos largos. O desgaste se faz sentir. A vista já não é a mesma. A audição decaiu bastante. Os cabelos banharam-se de prata, muitas vezes encobertos por tintas...
 A natureza é perfeita. O homem é que complica. Os olhos perdem a nitidez para que ao nos mirarmos ao espelho, não percebamos as rugas, os sinais, as manchas escuras de sardas, da senilidade na pele; O ouvido não capta sons com perfeição para nos preservar do que dizem a nosso respeito ou para não ouvirmos quando zombam de nós; Os cabelos prateados suavizam as feições, neutralizando as marcas do tempo, com uma luminosidade que nos torna mais dignos.
Mas... A tecnologia acena com determinados tratamentos e cirurgias como fórmula de rejuvenescimento...
A vida avança célere, quase tão rapidamente como a tecnologia da informática. Quase nos empurra para frente e não temos tempo para perceber que o corpo não tem a mesma idade do espírito.
Quando, no meio da noite, no silêncio mais profundo da madrugada, a insônia chega e se instala, paramos para pensar. Então, nos damos conta de que o romance se aproxima do epílogo e a principal personagem somos nós... Assalta-nos um estremecimento. Perguntas insistentes e desordenadas se chocam meio à escuridão como repórteres disputando espaço diante de uma personalidade importante: “Por que estás neste mundo? Nesta casa? Nesta família? A que vens? Será que a vida que levaste serviu para acrescentar alguma coisa positiva? Será que colocaste teus dons a serviço do outro? Será que desempenhaste bem o teu papel de pai? De mãe? de avó? De tia? De irmão? Será que foste uma pessoa boa? Será que conseguiste fazer felizes as pessoas com as quais conviveste? Será que o que fizeste era o que deverias ter feito? Será?... Será....  

Texto publicado na antologia II - AELN  p.24

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