DIGNIDADE NA LAMA DA SARJETA


O sol pouco se mostrou neste dia de verão. A tarde já estava de partida sem aquele pôr-do-sol que inunda a alma de alegria como a força que emana de uma obra de arte e que nos faz sonhar com um novo amanhecer.

 Nuvens cinzentas cobrem o céu, deixando transparecer alguns espaços, como retalhos coloridos de um azul acinzentado que faria de tudo para ser celeste. A cara feia do fim de tarde induz a um recolhimento extremamente silencioso, quase melancólico. Da janela da sala onde trabalho, vejo um pássaro apressado pousa no frágil galho da espirradeira que se balança com  tamanha afobação da ave. Tão logo pousa, abre as asas quase em desespero, infla o peito e com toda a força de que é capaz, canta, ou melhor, grita estridentemente como a anunciar uma catástrofe sísmica. Outros pássaros se achegam disputando espaço na espirradeira que se alteia pela cerca e se debruça sobre o jardim na frente da casa. A amendoeira que há dois invernos rigorosos quase feneceu, embora tenha perdido seus principais galhos que a tornavam mais alta, recupera-se. O jambolão, na calçada, impõe-se com sua copa harmoniosamente redonda, quase alcançando a rede elétrica pública. Estas árvores, ao entardecer, são uma festa para os pássaros. São pousadas de infinitas estrelas.
É fevereiro na praia. Mês nobre de veraneio. Mas, na minha rua, não passa uma viva alma. Os cães, prenunciando alguma coisa, silenciam seus latidos e buscam algum refúgio. Nas varandas das casas a ausência de pessoas torna a rua mais triste ainda. O silêncio é tão profundo, revestido de cinza, que chega a incomodar. Sabe, quando esse tipo de situação nos inquieta e ficamos como os cães, de um lado para outro... Parece que está prestes a se desencadear algum fenômeno... E ficamos impedidos de fazer qualquer coisa, embora o que fazer não nos falte? Dou uma volta pela casa e volto novamente para escrivaninha, diante da janela. Entre a leitura de uma página e outra,  levanto os olhos para contemplar o que se passa lá fora.
Uma voz me chama:
-Senhora!  Senhora!
Levanto-me. Olho para o portão. Uma senhora, veranista.
-Pois não?
-Senhora, há um homem caído ali na sarjeta... Não estou com meu telefone. A senhora poderia chamar alguém para socorrê-lo?
-Vamos ver o que há com ele. Será que teve algum mal-estar ou...
Ela me acompanhou. Chegamos bem perto do acidentado. Bicicleta para um lado homem para outro, estatelado na sarjeta lamacenta. Quem seria?  Como seria sua família? Tinha mulher e filhos? Onde morava? Aparentava meia idade, estatura média. Era claro, talvez descendente de italiano ou alemão. Suas roupas não tinham cor ou tinham se revestido com a cor do entardecer sombrio. Via-se que era uma pessoa simples. Barba por fazer... Não se mexia. Logo pensei que estivesse morto. Por várias vezes o chamamos: “O que houve com o senhor?!” Parecia morto ou desmaiado. Depois de algum tempo em que o observávamos, abriu os olhos. Olhou-nos sem nos ver. Nada respondia. Entrei em casa, pequei o celular e do jardim  disquei para o “190”. Expliquei a situação. A resposta foi pronta: “Não temos viaturas, senhora. Estão todas nas ruas prestando atendimento aos chamados: gente esfaqueada, brigas, acidentados, afogados, agressões familiares... Drogas...”
-Então o que faço com esse homem caído na sarjeta?
-Telefone para o SAMU. Disque para o número tal.
Sem deixar de olhar para o homem, tentava ligar para o SAMU. Falava em voz alta pelo nervosismo e inquietude que a situação me causava. Enquanto estou telefonando, chegam aos meus ouvidos os gritos do homem:
-Fala!...  Fala!...  Fala!... Fala!...
“Ainda bem que não está morto”- pensei.
A recepcionista do SAMU ouviu minha história e me passou para a pessoa responsável por tal tipo de atendimento. Expliquei mais uma vez o ocorrido. A resposta foi direta:
- Não podemos fazer nada, senhora, porque não se configura um acidente. A senhora telefone para a Brigada Militar, “190”.
-Já telefonei. Não há viatura disponível. Sugeriram que ligasse para vocês. O homem está caído na rua, próximo á sarjeta. Há o perigo de ser atropelado a qualquer momento. Só depois de ser atropelado é que devo chamar o SAMU?
-Infelizmente, nada podemos fazer.
E eu? O que faço?
A senhora que me chamou para prestar socorro àquele pobre homem, permaneceu ao meu lado o tempo todo. A informação que se tem, quando nos deparamos com alguém acidentado “é não removê-lo para evitar algum agravamento da situação”. Continuamos a observá-lo de longe. Conseguira sentar-se. Só então percebemos que estava com sinais evidentes de embriaguês. Fiquei mais tranquila porque até parece que bêbados são protegidos por anjos...
Na rua, somente a senhora veranista que passava, eu, o bêbado e o silêncio triste daquele entardecer. A situação fugia de nosso controle. Um pouco afastadas, pensávamos nas providências que deveríamos tomar. O homem fez um grande esforço e conseguiu levantar-se. Ergueu a bicicleta. Desequilibrou-se  e caiu de cara no lodo da sarjeta com  bicicleta e tudo. Ali ficou por mais um tempo, caído, com sua dignidade enlameada na sarjeta. Fez mais uma tentativa. Levantou-se com dificuldade. Ergueu a bicicleta. Apoiado nesta, como se fosse um andador e bem devagarinho, foi andando rua a fora...
Os passarinhos calaram-se acomodados nas árvores.
Não consegui nem perguntar o nome da senhora que permaneceu comigo naquela situação. Quando me dei conta, já não estava mais ali.
E o silêncio cinzento encobriu a rua.

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